Em uma reação
bioquímica catalisada por enzimas, essas proteínas podem pegar ‘carona’
no calor liberado na reação para se mover com mais velocidade. É o que
mostra Carlos Alberto dos Santos em sua primeira coluna de 2015.
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Modelo estrutural da
catalase. Estudo recente publicado na revista ‘Nature’ mostra que
enzimas como essa aproveitam o calor liberado nas reações químicas de
que participam para ganhar velocidade. (imagem: Wikimedia Commons)
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Podemos dizer que essa história começou com uma metáfora elaborada em
1894, quando Emil Fischer (1852-1919), prêmio Nobel de Química de 1902,
considerou que as enzimas e seus substratos devem se encaixar
estruturalmente como uma chave e uma fechadura.
Só quando há esse casamento estrutural é que o sistema
enzima-substrato pode iniciar sua ação bioquímica. Para além da
metáfora, os trabalhos de Fischer inspiraram gerações de bioquímicos,
todos fascinados pela ação catalítica das enzimas.
A história dessa área da bioquímica registra um grande número de
estudos acerca dos detalhes e princípios que governam as transformações
de moléculas reagentes em produtos, deixando de lado a investigação do
destino do calor envolvido na reação.
Uma primeira iniciativa nessa direção, tendo os sistemas biológicos
em geral como foco, foi apresentada por Erwin Schrödinger (1887-1961) em
seu clássico livro O que é vida? O aspecto físico da célula viva,
de 1943. Mas foram necessários mais de 50 anos, desde esse manifesto de
Schrödinger, para que a metáfora de Fischer fosse considerada pela via
da termodinâmica.
Há muito tempo conhecemos os complexos movimentos das células vivas e
suas funcionalidades. Sabemos, por exemplo, que uma única célula é
capaz de criar uma cópia de si mesma em menos de uma hora, de corrigir
erros em seu próprio DNA, de extrair energia no processo da fotossíntese
e de realizar diferentes tipos de movimentos lineares e rotacionais.
Tudo isso tem convergido para a noção de nanomotor biológico e para
tentativas inspiradas em seu comportamento que levem à fabricação de
dispositivos artificiais, ou seja, nanomáquinas capazes de converter
energia em movimento e força.
Entre os movimentos complexos observados nos sistemas celulares
naturais, um está despertando grande interesse atualmente: a difusão
anômala de enzimas após reação catalítica.
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Trabalhos pioneiros do químico alemão Emil Fischer (à esquerda)
inspiraram estudos sobre a ação catalítica das enzimas. O físico
austríaco Erwin Schrödinger (à direita) foi um dos primeiros a
investigar o destino do calor nas transformações de moléculas reagentes
em produtos. (fotos: Wikimedia Commons) |
Além de modelos matemáticos, resultados experimentais têm mostrado
que, após a catálise, algumas enzimas se movimentam mais rapidamente.
Tudo indica que esse aumento da difusão tem a ver com o tipo de
substrato e com a velocidade da reação bioquímica.
Embora seja do conhecimento de todos que há liberação de energia
durante essas reações, nenhuma das explicações apresentadas até
recentemente levaram em conta o efeito do calor liberado sobre o
processo de difusão anômala.
Efeito quimioacústico
Em trabalho publicado na edição
on-line da revista
Nature,
em 10 de dezembro último, Clement Riedel e colaboradores apresentam um
modelo segundo o qual as enzimas catalase, urease e fosfatase alcalina
podem surfar em ondas de calor produzidas pelo que eles denominam
'efeito quimioacústico'.
O modelo funciona se o ponto ativo da reação estiver fora do centro
de massa da enzima. Então, o calor liberado sob a forma de uma onda de
pressão alcança a interface entre a enzima e o solvente em momentos
diferentes.
Isso significa que a pressão é maior em uma parte da enzima do que em
outra – e é essa diferença que a impulsiona. Se o centro da reação
estivesse no centro de massa da enzima, não haveria diferença na
pressão, e ela não se deslocaria.
Os resultados experimentais foram obtidos com espectroscopia de
fluorescência de correlação (FCS, na sigla em inglês), uma técnica
especialmente apropriada para testar o modelo.
Ao contrário das técnicas calorimétricas usuais, que medem a energia
liberada na reação como uma média para um conjunto de moléculas, a FCS
permite avaliar o comportamento de moléculas individualmente, bem como
os efeitos (conhecidos tecnicamente como ‘transientes’) produzidos pela
reação em curtos intervalos de tempo. O deslocamento do centro de massa
da enzima durante esse momento transiente foi denominado ‘efeito
quimioacústico’.
Os pesquisadores fizeram vários testes para excluir a possibilidade
de interferência de outros mecanismos. Por exemplo, para mostrar que o
aumento da difusão tem a ver com a reação química e não apenas com o
processo de acoplamento e desacoplamento da enzima ao substrato, fizeram
experimentos com a enzima catalase na presença de trinitreto de sódio,
que inibe sua ação catalítica.
Na presença do inibidor, a enzima se associa ao substrato e dele se
desassocia sem criar qualquer produto, ou seja, não ocorre reação
catalítica. O coeficiente de difusão permanece o mesmo, antes e após a
associação.
Para validar a interpretação, as enzimas foram aquecidas diretamente com um feixe de laser
que fornece energia similar àquela produzida na reação catalítica. Os
resultados mostraram que de fato a enzima teve seu coeficiente de
difusão aumentado após a incidência do laser.
Portanto, o aumento do coeficiente de difusão, observado por vários
pesquisadores, é uma consequência da liberação de calor durante a reação
bioquímica catalisada pela enzima.
Embora se trate de uma interpretação inovadora para um fenômeno
conhecido há muito tempo, o trabalho de Riedel e colaboradores está
longe de representar a realidade, que parece ser bem mais complexa.
Para se aproximar do que se imagina ser a realidade, o modelo deve
evoluir para a inclusão de detalhes microscópios e levar em conta o fato
de que tanto a enzima como o ambiente em sua volta são inomogêneos.
Para simplificar o tratamento matemático, os autores consideraram esses
materiais homogêneos.
Por: Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana
Fonte: Ciência Hoje on-line, 09/01/2015.